A Helena Vilaça enviou-nos este artigo, que saiu hoje no JN. Acho que vale a pena publica-lo também aqui!
A vasta polémica que ocupou páginas de jornal, nas últimas semanas, acerca da retirada das escolas dos crucifixos mais não é do que a ponta de um icebergue dum tema delicado e incómodo para vastos sectores da sociedade portuguesa como é o caso da liberdade religiosa e que denota o quanto ainda há para aprender em matéria de democracia e cidadania.
O simples facto de a ministra da Educação, em resposta a diversas queixas acerca da existência de crucifixos em salas de aula, ter mandado averiguar cada situação e, após auscultação da comunidade escolar, ter feito cumprir a lei, originou um conjunto de reacções exacerbadas como se o Estado português pretendesse impor o laicismo enquanto ideologia dominante tendo como protagonista uma ministra jacobina.As diversidades culturais, religiosas, étnicas constituem uma das principais características da actual fase da modernidade.
Portugal, à semelhança de outros países europeus, tem-se confrontado com este novo cenário de pluralidade, o qual coloca novas questões em vários domínios da sociedade, em especial no sistema político.
Claro que este processo, adquiriu uma nova dimensão depois da II Grande Guerra, mas o início do fim do monolitismo religioso encontra as suas raízes bem antes.A tradição cristã começou a ser objecto de crítica filosófica e política, com os primeiros pensadores humanistas, mas principalmente nos séculos XVI e XVII.
Mais importante do que a atitude de pensadores particulares terá sido o próprio curso da estrutura social e da sociedade em geral. O sociólogo Bryan Wilson chama a atenção para duas "forças poderosas" que acabaram por transformar a tradição cristã o processo de secularização e a emergência do Estado laico.
A coesão social deixou, por esta via, de estar associada ao imperativo do consenso religioso. A religião deixou de assumir como função primeira assegurar a manutenção da ordem social. Gradualmente, a identidade nacional deixou de ser confundida com identidade religiosa e foram sendo reconhecidos os direitos das minorias religiosas e mesmo dos não religiosos ou das minorias anti-clericais. Se o reconhecimento dos direitos individuais só recentemente começou a ser alargado, isso explica-se, no essencial, pela natureza corporativa que caracterizava a vida social. Apesar disso, na Europa, só recentemente a legislação começou a contemplar ou a alargar os direitos das minorias religiosas.
A história ocidental revela, nos vários momentos e contextos geográficos, que sempre que foram feitas leis acerca de liberdades religiosas, estas nunca protagonizaram uma iniciativa de mudança, antes têm representado um imperativo de resposta a acontecimentos, alguns dos quais inesperados. Mesmo nos actuais regimes democráticos podem ser identificados casos de marginalização ou subordinação de grupos religiosos. Nas nossas sociedades, as minorias religiosas são, à partida, desprovidas de poder, recursos e oportunidades face aos detidos por igrejas maioritárias. A projecção que as instituições religiosas dominantes dispõem nos meios de comunicação social é bem ilustrativa do facto. Tendo adquirido uma maior liberdade de expressão, as comunidades religiosas minoritárias em Portugal, ao longo do último quartel do século XX, foram apresentando perante os governos e na esfera pública um conjunto de reivindicações sob o argumento de uma maior igualdade para todos os grupos religiosos e tomando como elemento de comparação a Concordata com a Igreja Católica Romana, situação que consideram de privilégio.
Tanto a renegociação da Concordata como a nova Lei da Liberdade Religiosa representaram, nas primeiras décadas pós 25 de Abril, um assunto de extrema delicadeza para o poder político. Só em finais dos anos noventa, a situação da liberdade religiosa em Portugal foi reavaliada e uma nova lei começou a ser elaborada, tendo sido aprovada pela Assembleia da República em Abril de 2001. A permanência da lei marcelista de 1971 representa um facto contraditório aos princípios democráticos constitucionais. Isto porque a Constituição democrática de 1976, apesar de incluir o direito à liberdade religiosa, manteve uma legislação específica nessa matéria obsoleta.Hoje, embora em termos legislativos, se tenha alcançado uma situação mais próxima de um ideal-tipo de pluralismo religioso, na realidade existe o domínio de um discurso produzido pela cultura religiosa dominante que continua a conceber o país em dois mundos os católicos e os anti-católicos.
Ironizando, podemos dizer que para muitos ser português deveria ser sinónimo de ser católico. O que está em causa, não é negar toda a matriz católica romana que forjou, desde os primórdios da nacionalidade, a cultura na sociedade portuguesa, nem toda a sua herança patrimonial e simbólica inscrita no nosso território. A questão é outra. Concretizemos. Do mesmo modo que não faria qualquer sentido um não católico romano (fosse ele protestante, judeu, testemunha de Jeová, ateu, ou muçulmano) internado num hospital católico, exigir a retirada do crucifixo da parede do quarto, ou no caso de ter filhos a frequentar colégios católicos protestar contra o ensino religioso e os símbolos religiosos ali presentes, também é completamente impróprio (leia-se, anti-constitucional) que num hospital ou numa escola públicos de um Estado laico e democrático estejam presentes elementos religiosos que atentam à crença religiosa individual e obstaculizem a integração de todos e de cada um, na diversidade que tal implica, no espaço público segundo regras de comunicação igualitárias.
Só um Estado que defenda o princípio da laicidade, o que é diferente de ideologia laicista, dispõe de instrumentos para gerir a diversidade e proporciona condições para combater a exclusão. Sim, porque a exclusão religiosa é também uma modalidade de exclusão social e a liberdade religiosa é um direito contemplado na Carta dos Direitos Humanos. Por tudo isto, parabéns senhora ministra.
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