A questão do “motor da economia” não é AQUI, sequer, uma questão de teoria económica.
Então o Estado não produz riqueza, é?
Apenas podemos considera-lo melhor depositário e consequente gestor da parte comum da riqueza por nós produzida, é?
Mas lá que isso é duvidoso, é. Pelo menos se assim fosse, era.
Como todos sabemos, uma das disputas do Sec. XX foi mesmo a da natureza produtiva ou não dos Estados (já lá voltamos), ok, não será essa a sua melhor vocação. Podemos dividir-nos no sentido a dar à nossa opinião, à nossa escolha.
Podemos preferir e acreditar que seria melhor que o Estado (que somos todos nós, mas também já lá voltaremos) tomasse nas suas mãos a produção (a criação de riqueza, ou não?) ou, pelo contrário, que o Estado se reduza a proporções mais ínfimas (regulação, soberania, etc.), quase nada até, e deixe aos privados a actividade produtiva, a criação de riqueza e de preferência que atrapalhe pouco. Eu não concordo, mas vamos lá…
É verdade que os modelos de economia planificada e estatizada não vingaram, mas dai a dizer que o Estado não produz riqueza ainda vai um bocadinho. As Practika não ficavam nada atrás das Pentax, pois não? Pois não, mas não era isto, era a questão do “motor da economia”.
O que eu digo é que existe uma muito longa tradição em Portugal, quanto a mim consequência da nossa cultura mediterrânica (E. T. Hall caracteriza isto muito bem) de ter o estado como motor da economia e que essa não é a raiz dos nossos actuais problemas. É quase uma inevitabilidade num país com a dimensão do nosso e com a nossa herança cultural. Poderia ser diferente se tivéssemos uma outra escala, ou se acaso pertencêssemos a um outro envolvimento cultural.
Podemos seguir ou experimentar caminhos ideológicos muito distintos, mas os grandes desígnios, aqueles que pela sua dimensão arrastam consigo a generalidade dos agentes económicos, ficam sempre a cargo do Estado, ou então não se cumprem.
Claro que os liberais mais convictos alegam já a seguir que é o estado que não dá espaço, que não permite que a economia se desenvolva livremente, baseada no binómio oferta / procura, que por sua vez resolveria todas as questões de equilíbrio social e de justiça e que ainda permitiria avanços e progressos muito mais acelerados. Mas nós sabemos que não é assim. Sabemos até que não resolve quase nada e que simplesmente acentua os desequilíbrios sociais. Mas a questão aqui nem sequer é essa, não a podemos colocar de forma exclusivamente ideológica. A questão põe-se com a pergunta que o amigo Moreira já aqui pôs, onde é que eles estão?
Não tem faltado oportunidades aos agentes económicos privados de demonstrar que a sua acção é melhor e mais benéfica para a sociedade (ainda que não seja o seu fito, porque esse é o lucro) do que a que o estado vem exercendo. Mas a verdade é que nada.
Quase sem excepção, sempre que o estado abdicou de uma qualquer porção da actividade económica em favor dos privados, aparentemente as coisas melhoraram, mas na realidade as pessoas (cidadãos deste pais) ficaram sempre pior servidas.
Foi assim com os transportes (urbanos e não urbanos), foi assim com os bancos e seguradoras, é assim com a saúde, é extraordinariamente assim com a educação, foi e é assim com as telecomunicações, com os produtos petrolíferos, e assim vai ser com a energia eléctrica, etc., etc..
Mas isto é naquilo que os privados abraçam, porque as coisas mais estruturantes, chamemos-lhes assim, nem sequer lhes interessam.
Por exemplo, eu não me importava nada que a AMTRAK viesse a Portugal criar e explorar o TGV. Ó pá, mas eles não vêm… Eu não me importava nada que a associação dos empresários do sector turístico ali de Viseu, reabilitasse a Linha do Vouga. Mas eles nada… Aquilo está parado há dez anos e este governo até não se portou nada bem, mas o que é certo é que eles nada.
E aqui é que entra a questão cultural. Em Portugal, se não for o Estado o motor, a carroça anda a pedais, isto é, não anda.
Na melhor das hipóteses temos os Amorins e os Belmiros (também já lá vamos), que “até são bons exemplos”, imagine-se.
Para dizer o que? Que um americano pode ser liberal ou até progressista de uma outra forma, com uma distancia em relação ao estado. Em Portugal, se não for o Estado, somos ultra conservadores, no sentido de que o tempo pára mesmo. Por isso é que foi sempre o Estado, foi ou não foi? Muitos dizem que é uma herança do Estado Novo, mas não é, foi sempre assim. Pelo menos desde as especiarias da Índia e a seguir do ouro do Brasil.
A verdadeira conquista está nas pessoas (até porque os mais atentos já terão certamente constatado que os comportamentos variam muito pouco, dentro e fora do estado). Mas não no sentido de que fala o Moreira, isto é, não é uma questão de culpa das pessoas. As pessoas são estas, somos nós.
E isto não foi a lado nenhum? Como não? Há trinta anos éramos colonialistas em África e hoje estamos no pelotão da frente da Europa e isto não foi a lado nenhum? Hoje há milhares e milhares de pessoas, de outras nacionalidades, europeias, africanas, asiáticas e americanas, a querer viver e trabalhar cá e isto não foi a lado nenhum?
Mas vamos então aos Belmiros e Amorins, os tais maiores criadores de emprego.
Mas o que é que tem feito por “isto”? Não é evidente a asfixia que provocam nos parceiros comerciais e ainda mais nos concorrentes? Não é evidente que os mecanismos de retenção de capitais e ausência de stocks condenam sem piedade largos sectores da classe média que é invariavelmente o sustentáculo social das comunidades. Não é evidente a degradação da qualidade do emprego que provocam. O que está em questão não é a quantidade do emprego, mas sim a qualidade do emprego. É evidente que aqui os padrões de cada individuo e de cada grupo são diferentes, mas para quem acredita, como eu, que com a quantidade de riqueza criada podemos viver cá TODOS e viver bem (este acreditar não é tanto uma questão de fé, mas mais uma questão de calculo), os ditos não são exactamente bons empregadores, para além de serem muitas outras coisas menos boas (aquilo é tudo tão reles, a começar pelos projectos de arquitectura que promovem).
O problema da riqueza é de distribuição e essencialmente de desperdício, não de produção. Parece-me evidente que tem que existir um equilíbrio entre o valor trabalho e as outras formas de criar riqueza, que no caso está completamente distorcido (perdoem-me a linguagem pouco técnica). A questão de saber se a riqueza que produzimos é ou não suficiente para as necessidades que criamos não é exactamente esta, é saber se a riqueza que produzimos, DISTRIBUIDA E DESPERDIÇADA desta forma é ou não suficiente para as necessidades que criamos, adicionadas às necessidades que nos são impostas e às necessidades que nos são sugeridas. Está bom de ver que a resposta será sempre um rotundo NÃO. Quando juntamos isto ao referido desequilíbrio no valor do trabalho chegamos sempre a uma situação de insuficiência, ainda por cima facilmente comprovável pelos níveis sempre crescentes de endividamento. Insuficiência essa que encontra como resposta a necessidade de produzir mais e com menos custos, numa espiral de tensão social estranhamente benéfica para os mesmos de sempre. Os mesmos de sempre, curiosamente.
Agora emprego a sério, não são os Belmiros nem os Amorins. Não digo que seja só o Estado, porque não é, mas enfim.
Se olharmos para a evolução histórica, que tipo de emprego deveríamos aspirar por esta altura do campeonato? Quantas horas de trabalho, que direitos e que deveres? Que garantias, que dedicação? A informática não ia servir para trabalharmos todos apenas metade do tempo, que as máquinas fariam o resto? Então porque não sucedeu? Ou será que sucedeu e essa riqueza anda a ser mal distribuída e muito desperdiçada?
Talvez não fosse a distribuição da riqueza o grande problema dos países comunistas, mas sim a produção e mais uma vez, sobretudo o desperdício. O estado dificilmente é “nós”, mas sim uma entidade semiabstrata que existe nas nossas cabeças principalmente para complicar. Dai que colectivamente acabamos sempre, no mínimo, displicentes em relação às coisas do Estado, fazendo-o fracassar quando atinge grandes proporções.
Mas dai a dizer que o Estado não produz riqueza vai um grande grande passo. Mesmo directamente produz riqueza, mas então de forma indirecta, nem se fala. Ó Moreira, eu não acho que a vocação do Estado seja lucrar com a OTA, mas sim cumprir o desígnio de ter uma rede de aeroportos válida que sirva uma rede de transportes aéreos válida, capaz de SERVIR os cidadãos e, se possível, criar riqueza. No caso da linha do Vouga, que dificilmente poderá criar riqueza, o Estado deve mantê-la, custe o que custar.
Que não fique a sensação de que me agrada o estado das coisas e que defendo um Estado pesado. Não, em Portugal, na minha opinião o peso do Estado é excessivo e tem que ser corrigido, mas nunca diminuindo as suas virtudes, porque se alguma coisa de bom ainda se vai fazendo é através do Estado. Das duas uma, ou o Estado abraça outras áreas da actividade produtiva e não é provável que o faça (mas poderia faze-lo e bem), ou terá que emagrecer, porque é excessivo para actividades de soberania e regulação, ainda por cima quando as exerce tantas e tantas vezes em duplicado e triplicado (ex: as SRU’s).
Quanto à OTA, eu já referi que por mim não se fazia, mas que não virá grande mal ao país se se fizer. Mas quando escrevo que não fazia, não é porque as razões para o fazer não me convençam, e sim por um outro tipo de convicção, mais empírica, que me diz que os transportes aéreos não vão evoluir da forma que os estudos actuais permitem antever. Agora a argumentação para não fazer o aeroporto tem aspectos tão caricatos como a contrária. Então os arautos da poupança não se lembram dos tremendos dispêndios ano após ano de gestão corrente, se em vez de um só aeroporto se distribuísse o tráfego aéreo por dois ou até três aeroportos (Beja, Figo Maduro, Portela, etc.). Mas isso é coisa que se proponha como solução. Numa era em que os custos de investimento em infra-estruturas se amortizam em cada vez menos tempo, em que os custos com mão de obra assumem proporções inviabilizadoras… O problema, quando se cria um novo equipamento não é quanto esse equipamento vai custar, mas quanto vão custar ao fim de x anos as pessoas que lá vão estar a trabalhar. Principalmente se for no Estado, que não tem a flexibilidade dos privados. (Nalguns casos já quase se justifica estar sempre a construir o mesmo equipamento, porque numa sociedade em permanente mudança, os ganhos de produtividade inerentes a uma nova organização, por sua vez inerente a uma nova construção, são compensadores em relação aos custos de construção).
Como ia dizendo lá atrás, a grande conquista está nas pessoas. Está em conseguir operar algumas mudanças fundamentais nas mentalidades colectivas. Para que aquilo que lhes põe à frente como um imperativo quase moral (tipo se não há dinheiro é porque produzimos pouco, insinuando que trabalhamos pouco e temos ordenados e regalias a mais) seja objecto de reflexão critica. Para que controlemos melhor as nossas atitudes mais displicentes, e consigamos outro tipo de ganhos. Até para que criemos maior indignação face à escabrosa forma como se vai processando a distribuição da riqueza (bolas, porque é que quando nos comparamos com a Holanda ou com a Dinamarca nunca nos surge comparamos a forma de distribuição de riqueza e apenas comparamos os sistemas de saúde?). Será que as fortunas dos Belmiros e Amorims alguma vez poderiam ter tido lugar na Holanda ou na Dinamarca? Quanto ganha um médico na Holanda? Qual é a proporção para o salário mínimo?
A mim preocupa-me principalmente aquilo que atenta contra o Estado Social e também a forma como se destrói o que está bem feito (ou no bom caminho) a pretexto de um qualquer momento menos bom. E por agora, para conversa, já chega.