Tenho feito algum esforço, para evitar pronunciar-me sobre questões de ordem urbanística na cidade. Dos poucos artigos científicos que tenho feito, procuro versar a minha investigação sobre o objecto arquitectónico, as suas relações no campo formológico e morfológico. Tangencialmente abordo a visão de grande escala. Tenho-me até convencido, daquela verdade que os arquitectos não gostam de ouvir – não sou urbanista. E não sou mesmo, mas também não me armo que posso ser, e disso me orgulho.
O texto do meu grande amigo Daniel conseguiu, no entanto, despertar em mim, finalmente a vontade de escrever sobre a questão urbana. Só o consigo tentar fazer de forma simples e portanto, serei provavelmente demasiado didáctico, ou demasiado pessimista, ou ainda irritantemente critico, por isso espero que me desculpem.
Devo começar por dizer que o texto citado coloca o tema como poucos o tem feito. Estamos a falar do que realmente interessa, ou seja, como antes já ouvi o Domingues abordar de forma semelhante (e liberal como lhe chama o TAF) a evolução da cidade, tal como já li o Koolhaas falar sobre o fim do urbanismo, ou ainda como tenho observado a escola de Madrid, que despudoradamente arroja nas propostas de arquitectos como Mansilla, Abalos e Herreros. Na verdade esquecemo-nos que a cidade do Porto, ou melhor o centro histórico do Porto, tem proveniência na tipologia da casa burguesa-medieval, fruto de uma transformação social brutal que ocorre nesse período nas cidades europeias: O desenvolvimento da actividade comercial e a ascensão de uma determinada classe, ligada ao que vulgarmente chamamos hoje de, serviços - a burguesia. Assim as cidades passaram de espaço de habitação, onde as ruas serviam os caminhos de acesso a módulos que se aglomeravam em torno de pátios, para serem agora comunicantes com o espaço publico, abertas para a rua, esventradas por cidadãos, que no piso térreo faziam o seu oficio, no logradouro cultivavam a sua pequena horta e crivam os seus poucos animais – tudo para a subsistência. Nos pisos de cima sobrepunham-se as famílias, pais, depois filhos, depois netos e por aí fora.
E deste modo desenvolveram-se os estimados “Cascos Antigos”, no Porto e na maior parte das cidades por aí fora.
Hoje, fruto da organização territorial e das novas vivências, procuramos sarar as feridas que este modelo, impraticável no século XXI, vai fazendo nos velhos quarteirões e tecidos urbanos da cidade do Porto. Enaltecemos as texturas dos granitos, a história do edifícios e clamamos o nome do património como principio redutor de tudo, grande buraco negro do conservadorismo contemporâneo.
Entretanto fomo-nos habituando a uns tiques que alguns arquitectos deixam como rasto, para fazerem uma mixórdia (palavras de Távora sobre a sua casa de Ofir) de reabilitação: Rebocos grossos, cores ocre ou amarelos vivos, rosas velhos, cantarias à mostra, caixilharias esmaltadas ou em inox e muita madeira. Convencemo-nos que assim se recuperava, tratando a pele. Pintando fachadas, com anuncios da CIN.
Faz-se do alumínio inimigo e do Betão o demónio!
No fundo promove-se o reaproveitamento de edifícios sem reaproveitar o que quer que seja. Primeiro porque nesta cidade vivia-se, nos séculos anteriores, sem automóveis, motas, autocarros, metros, táxis, etc.. As ruas eram espaços de vida e não barreiras. Segundo porque definiu-se como crime atacar umas fachadas do inicio do século XX ou de fins de X IX, mas aceita-se com normalidade as maiores atrocidades no interior de edifícios setecentistas. Nem que seja betão escondido por todo o lado.
Ironia das ironias, na cidade onde se descrimina mais o betão, a Casa da música assume-se como o ícone mais forte e marcante deste Porto de inicio de século. O betão no seu estado mais puro e asumindo as suas maiores capacidades.
Chego aqui para falr do PDM. Foi este o documento mais discutido na cidade e provavelmente no País dos ultimos tempos. Dissecaram-se, palmo a palmo, opções de terrenos deste e daquele, do Boavista, da Câmara, do Parque Oriental, do Túnel, etc. Argumentaram-se os indices e mais não sei bem o quê, mas ainda não ouvi, pelo menos como deve ser, alguém perguntar que estratégia de fundo tem este documento!
Qual a motriz do pomposo Plano director Municipal dos Próximos 10 anos?
Para onde vamos?
Com este plano executado a cidade vai ser o quê?
e imaginamos as respostas, mesmo em tom de pergunta retórica:
O centro de uma AMP que já é?
A grande Metrópole do Noroeste Peninsular que Já é?
Então, vamos ser melhores em quê? Vamos ser mais urbanos onde? Vamos ser mais contemporâneos como? Vamos viver bem e apresentarmo-nos como exemplo de quê?
Será no Centro tecnológico de Ramalde – zona de Ponta da Península de fazer inveja ao arroba 22 de Barcelona?
Será no Turismo, com uma cidade direccionada para a oferta cultural que prometeu?
Será num Centro histórico remodelado e vivido como poucas na Europa e no Mundo?
Será numa cidade sustentável e onde apetece viver sem poluição e insegurança?
Será numa cidade carregadinha de bairros sociais onde se vive bem, com os problemas sociais e urbanísticos resolvidos?
Será em quê?
É por isto que acho que neste âmbito o PDM vale pouco, para não dizer nada. É também por isto que o Masterplan vale pouco (embora me pareça valer mais que o PDM), porque não resume um sentimento da cidade e estará reduzido, demasiadamente reduzido, a uma boa carta de intenções.
Mas depois de falar do PDM, direi então um pouco do que me parece da baixa do Porto. E Continuo no modo de perguntas:
Será que ainda é um factor atractivo de mercado? Sem duvida. Muitos anseiam pelo clique, pela estrondo de investimento na baixa. Ele só não acontece porque somos todos conservadores, porque preferimos adiar mais um bocadinho do que arriscar um bom pedaço.
O exemplo mais flagrante é o de Barcelona, basta ler “a cidade dos arquitectos” do Moix, para perceber que Bohigas foi muito violento na recuperação daquele centro histórico. E é um socialista. Abdicou de muitos e muitos imóveis para salvar o conjunto. Rasgaram-se praças onde havia edificações do século XVIII e XIX. Aglomeraram-se prédios, mexeram-se em fachadas e fizeram-se edifícios novos. Quando digo novos, digo mesmo novos, como o MacBA ou o Corte Inglês, ou a extensão do Liceu, enfim por aí fora.
Será pictoresca e património?
Hoje todos dizem que a Baixa morre se a tratarem como um Museu, mas ninguém tem coragem de fazer mais do que isso. E acham possível que a chamada 3ª geração de habitantes chegue para encher o que falta e se perdeu. Podemos acreditar que com malta nova, artistas, pintores, músicos, jovens casais reconstruímos o que falta?
Mais vale assumir a baixa sem habitação! Ou isso ou se aceita muito mais flexibilidade, repito muito mais flexibilidade. (atenção que com isto não estou a defender muito mais densidade, nem muito nem pouco, quase direi nenhuma!)
Lembro-me de ter concorrido a um Europan (concurso europeu para jovens arquitectos), onde o fulcro da nossa proposta centrava-se numa proposta construtiva mais egocêntrica, tão egocêntrica, que o centro das salas colocava um écran, preparado para a televisão e Internet, onde cada um, na sua caverna, poderia virtualmente “tocar” os espaços que a sociedade global permite. Significa que as nossas casas e nós próprios, não pretendemos abdicar de sermos o momento que vivemos. Evitar a mais pura contradição que os arquitectos sentem melhor que ninguém. Os nossos amigos, os nossos clientes, reflectem uma sociedade que estimula a visão “passadista” e chama-lhe tradição. Gostam de casas que parecem antigas, com telhados da velhinha cerâmica, mas carros ultra-modernos nas garagens. Mobilam os seus espaços com as maciças madeiras exóticas que os seus avós gostavam, mas trocam os gramofones pelas aparelhagens, dvds, vídeos, interactivas, etc. Nem sabem o significado de tradição, pois tradição significa uma coisa actual, que continua a fazer-se da mesma maneira. Imitação não é tradição!
Significa que a baixa atrai as pessoas, hoje, por representar isso - a nossa memória, um pastiche que lava a ciade alienado do ultimo século- O lado pictoresco da contemporaneidade. E mesmo que desasjustado interessa manter. Ninguém fala das milhares de famílias de Miragaia e S. Nicolau que vivem empoleirados em casas que são insalubres (apesar de montes de giras por fora). Ninguém fala de uma população idosa que se encurrala em edifícios de vários andares, sem um acesso vertical que garanta a sua plena vivência ou mesmo o escape de uma acidente. Ninguém vê uma cidade incapaz de cumprir as dificuldade de acessiilidade a cidadãos de mobilidade condicionada.
Se a cidade, no seu centro é de pessoas idosas, devia reflectir isso e muito mais. Mas nem por aí nós encontramos os sinais do Porto hoje.
Finalmente devo dizer que discordo do Daniel quando politiza a cidade. Eu não consegui nunca ver a influência de Marx nos projectos de Garnier, Sant Elia, Corbu, e por ai fora. E acho que a cidade densa do Cardoso é igual ao Parque Maier do Santana. Entendo que a Maia é igual a Valongo, a Gondomar e apesar de tudo melhor que Gaia. Não consigo discernir, em Portugal nenhuma cidade que cresceu bem fruto de uma estratégia de esquerda ou de direita. Acho treta!
Considero até que a visão conservadora que tu falas só é mesmo importante por causa disso, por não nascer dessa fonte. Tendencialmente direi que se repetem as lutas de sempre, visionadas na discussão de 6 décadas sobre a casa portuguesa.
Vale a pena perguntar se o Portugal dos Pequenitos é de direita? Claro que é! Mas repara que nem nos mais fortes períodos de fractura ideológica isso foi importante.
Os principais arquitectos portugueses afirmaram-se sempre de esquerda. Veja-se o Siza, O souto de Moura, o Soutinho e por aí adiante.
De entre estes eu gostava de saber quantos projectos de encomenda publica tem eles. De esntre esses quantos foram objecto de concurso como manda a lei (e digo a Lei geral, não aquelas clausulas de excepção que dizem que só eles podem fazer um edifício de câmara municipal não sei aonde). São o pior exemplo! O caso do Souto Moura é escabroso –disse que era subempreiteiro da Soares da Costa na METRO. Disse que só por ética é que consultou o IPPAR. Os nossos jovens idolatram estes gajos que esmagam a classe. Que só dão aulas no estrangeiro. Que só dão maus exemplos no Pais. E que continuam a queixar-se de serem maltratados.
Na verdade falta-nos coragem. Os nossos heróis são também um bluf. Os especialistas repetem as mesmas coisas. E é preciso dar novo rumo, ou como o Pessoa, gostava eu de poder anunciar o eminente aparecimento de um Super-Camões do urbanismo nacional, mas seria pouca vergonha, por ser falso e por não conseguir ver isso no espelho. Mas como eu devem ser todos. E se alguma coisa de esquerda poderá servir ao Porto no seu desenvolvimento urbano, ela cingir-se-à, ao respeito por todos, à força de um trabalho colectivo e à humildade destemida de fazer mesmo.
Termino dizendo que discordo como é óbvio do Tiago Azevedo Fernandes quando ele defende a prioridade das pequenas coisas. Quando estimula os pequenos passos, mas certeiros. Acho muito honesta e correcta a sua posição. Acho mesmo a alternativa única em alguém que obrigatoriamente tem que prometer coisas (refiro-me a candidatos à câmara). Mas acho pouco. Ou realmente se define um rumo e avançamos, ou estaremos condicionados às receitas parvas dos eventos. Imitando a moda dos últimos 30 anos, onde os grandes acontecimentos empurravam o desenvolvimento. Convencendo-nos que as cidades fazem-se bem aos soluços, que são mais solavancos. Primeiro a 2001, depois uma cimeira, a seguir um Euro 04, e até umas corridas de calhambeques servem. Que virá a seguir?
Se puder e conseguir, continuo um dia destes (se valer a pena)!