por Pedro Baptista
Marcou-nos a todos os que, pelos Sessenta, passávamos pelo S. Lázaro, junto ao jardim com o mesmo nome. Uma, duas, três gerações consecutivas, pelo menos, delibávamos na longa tertúlia em que o Café S. Lázaro, com epicentro na ESBAP, se transformava, com as suas três fieiras de mesas individuais tornadas três grandes mesas corridas, envoltas numa grossa nuvem de fumo, tabágico e húmido, onde pontificavam artistas e arquitectos (pleonástico em alguns casos), como o Manuel Pinto, a Rosa, o Bizarro, o José Rodrigues, o Ângelo de Sousa, o Armando Alves, o Alexandre Alves Costa, o Manuel Fernandes Sá, os juvenalíssimos Vítor Sinde, Manuela Juncal e Camilo Cortesão, o finado José Garrett, o próspero Alexandre Vasconcelos, o Pacheco Pereira e nós próprios também pouco mais que miúdos, ainda antes de entrarmos na Faculdade de Letras e transferirmos, em parte, o epicentro do nosso nomadismo intelectual para o tsunami teórico e revolucionário do Piolho.
Mas havia uma figura, por vezes, escata e leve no poiso da sua fresta, de outras vezes, mera sombra fugaz, talvez rasto ou apenas pegada, que sobressaía tanto quando era presente como quando lhe contemplávamos a ausência: o Poeta, o Eugénio.
Geralmente ao lado do Zé (o Mestre José Rodrigues) também por vezes a sua mesa enchia-se com alguns mais jovens que recebiam a delicadeza da pronúncia das palavras, totais e mínimas, como a luz do fulgor do seu olhar aquilino que nascera entre os gregos.
Assim se liam os primeiros versos que, passo a passo, se iam tornando arsenal lírico de uma geração, como terá sido de outras, intimidade secreta de onde vinham as forças, talvez libidum, metamorfoseando as raivas em delicados sonhos de amor na acção libertadora concreta de lábios e punhos, rosas e fuzis, e sobretudo gritos. Todas as variações dos gritos num só grito. O do povo.
No seu apartamento, no 111 de Duque Palmela, deu-nos lição de política quando o estruturalismo chegava ao Porto e, por via de Althusser e de Lacan, tentava juntar Estaline e Freud, no maoísmo à “La Cause du Peuple”, ou seja espontaneísta, sartriano e francês
- Estaline? Vou mostrar-lhe o que diz o dicionário estalinista do Rosental/ Iudin sobre o Freud.
E, tirando, da estante repleta, um grosso volume, abriu a página e leu-nos a referência. Com coisa parecida com “pensador burguês e reaccionário que…”
Nem era de cá. E por que haveria de ser? Que é isso de ser de cá? E nós que somos de cá, somos de cá desde quando? Até quando? O que é ser? Onde nos levaria até nos transformar numa múmia! Interessa o estar! O estar com toda a plenitude de ser presença. E Eugénio estava cá, da forma que se conhece. Em palavras escritas há umas décadas, dizia-nos que a cidade era ”um burgo, pobre, sujo, reles até - mas gostaria tanto de lhe pôr um diadema na cabeça”!
Diadema com que se foi, forjado, burilado e aljofarado por si só, mas que todos nós, os que nos fomos despedir à Árvore ou ao Repouso, lhe lustramos com o bafo e calor dos olhares que já eram saudade.
Fica nos três palmos da ponta mais íntima da estante, aquela que, com a parede, se faz a axila do corpo da casa. Consigo e, por isso, connosco.
Mas fica no Porto uma sensação estranha, incómoda, se é que não será mesmo dilacerante. Era um outro Porto, em massa, onda generosa e florida, tão compacta que seria necessariamente a de todos, que se esperava envolvendo o Eugénio na hora do “Até sempre”.
Uma tristeza que fica preocupante: será que a depressão a que chegamos, ou a que nos levaram, já foi ao ponto de nem a identidade do que nos faz ser pessoas e viventes celebrarmos?
Fiquemo-nos. Dizer mais seria estragar o texto e o momento.
(Comércio do Porto, 17 Junho 2005)
domingo, junho 19, 2005
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