domingo, abril 24, 2005

SONHO

Alguém dizia, há uns tempos, que tudo começou entre os penedos, quando o “Grito do Povo” chegava e, sombras, esgueiravam-se para os recôncavos dos gnaisses, com uma lanterna sob a aba do casaco, a “ler, discutir, divulgar”.

Depois dos sussurros se cruzarem como beijos, seguiam, disciplinados, a direcção dos dedos que, trémules, corriam nas sublinhas as palavras impressas, lucernas de liberdade no breu das masmorras do quotidiano e, por vezes, retesavam-se sobre as palmas como se empunhassem os punhais gizados pela raiva. Era então que as águas conduziam a mensagem e as armas de penedia em penedia, de Matosinhos a Leça, de Vila do Conde a Viana, de Espinho ao Furadouro, de Aveiro a Setúbal, ora sulcando sobre as ondículas, ora navegando pelos canais secretos dos fundos, apenas conhecidos pelos congros, pelas moreias e por aqueles aquém Neptuno, largando por um momento o tridente e cariciando-lhes o dorso, invejoso do Sol, decidiu facilitar as cartas de marear.

Como era nas horas mais difíceis que os sussurros jorravam mais roucos das gargantas apertadas, tonitruavam em silêncio, misturando-se com os ventos e as torrentes marinhas, e, ora tocados pelo Oeste ora, rio acima, na preia-mar, alcandoravam-se às terras altas, donde o pegureiro era autóctone, antes de se fazer marítimo e se fazer ao mundo numa história de génios, loucos e canalhas.

Fazer o mundo.

Era assim o sonho, força da natura.

Como a tempestade.

Indómita

Real.

Por isso se fez em relâmpagos e trovões, gritos de dor, de parto e de revolta, sangue brotando da secura da sílica, entre as águas e os céus. Não quando cada um quis, mas como foi, não fosse a natureza o querer por si, tanto (ou mais) como todos nós.

A tempestade amainou e os homens cansados, sossegaram.

Afinal, se enfrentam, intrépidos, as vergastas da noite e da secura, é por necessidade, não porque seja a sua natureza de guerreiros. Quando o sorriso se alargava praticamente por todos os rostos e se reproduzia em flores de Maio nos lábios dos novos seres feitos para celebrar Abril, começaram a relampir e, confiantes nas coisas do futuro, adormeceram.

Quando, muito tempo depois, acordaram, perceberam que tudo não passara de um sonhos pois tinham esquecido –parece que era Valéry que dizia, ou terá sido Pascal? – que quem quer realizar os seus sonhos tem de manter-se permanentemente acordado.

Pedro Baptista
(in “Gazeta Literária, órgão da Assoiação dos Jornalistas e Homens de Letras do Porto, nº especial de 25 de Abril de 2004)

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