sexta-feira, abril 29, 2005

Reabilitação

Por razões que não interessa aqui explorar, a arquitectura e mais especificamente o urbanismo mantêm com a política uma ligação estreita desde os primórdios da humanidade.
Olhando para trás, para um passado relativamente recente verificamos que aquilo que se designou chamar “Movimento Moderno” tem uma correspondência muito mais do que temporal com o advento dos socialismos no mundo. É certo que também com o fascismo e em estreita relação com Mussolini, embora de curta duração.
Grosso Modo, existe uma correspondência directa entre a esquerda tal como foi vivida ao longo do Sec. XX e o Movimento Moderno, para o bem e para o mal.
Não é aliás coisa de estranhar, não só pela correspondência temporal, como também pela partilha de valores, e até por se tratarem, não poucas vezes dos mesmos intérpretes.
A grande generalidade dos Arquitectos e Urbanistas do Sec. XX foram homens de esquerda, muitos com posições destacadas nos respectivos partidos.
A expressão “Mudar o Mundo” talvez seja a que melhor sintetize o espírito que orientou e informou toda esta correspondência. À vontade politica que conhecemos de criar uma nova Sociedade sem classes, nas suas várias nuances e expressões (atenuar as diferenças de classes pode ser uma delas) correspondeu todo um movimento cultural e artístico, com especial relevância na arquitectura e urbanismo que, partilhando o ideal, pretendia criar uma nova arquitectura e uma nova paisagem para a nova sociedade não burguesa que estaria a surgir.

Da mesma forma que podemos considerar o comunismo soviético como uma das expressões mais radicais dos movimentos sociais do Sec. XX, também a famosa Carta de Atenas foi a expressão mais radical do Movimento Moderno na arquitectura e urbanismo. Os modelos propostos por Le Corbusier, por vezes muito distantes da sua própria pratica profissional, chegavam mesmo a limites hoje considerados criminosos. A construção de novas cidades europeias no lugar das medievas cidades burguesas. A destruição dos seus centros históricos, para dar lugar à nova cidade, feita com novas regras, destinada a novas formas de fruir a vida e à utilização intensa do automóvel.



Na arquitectura, no urbanismo, enfim, nas cidades, como no resto, em princípio, cabe à esquerda propor rupturas e à direita, conservadora, manter sistemas.


Não é pois por acaso que surgem recentemente em Portugal as SRU’s, e no caso do Porto, com a dimensão absolutamente despropositada que assume. Esta ideia de reabilitação em massa da cidade tradicional não pode ser vista isolada da vaga conservadora que ascendeu aos poderes e às mentalidades nos últimos anos.
Por um lado porque não se trata de reabilitar a memória de um passado que se nos revela nostálgico, e que se materializaria na recuperação selectiva de alguns bairros mais representativos; a memória nostálgica da cidade pré-industrial que invariavelmente nos seduz, mas que sabemos todos perdida nos atropelos do nosso tempo.
Não se trata também de propor nada de novo para velhos espaços, a necessitar de maior ou menor cuidado colectivo. Não!

O que POR AQUI se trata é de fazer nova a velha cidade, a cidade de outrora. Do que se trata é de fomentar um modelo urbano retrógrado por aproveitamento de uma certa retracção das mentalidades, própria de momentos de menor euforia social.


Sendo certo que as expressões mais radicais quer dos movimentos sociais quer do Movimento Moderno foram fracassando ao longo do Sec. XX, isso não significa, de forma alguma, a renuncia a alguns dos valores progressistas que informaram e conformaram tanto a cidade quanto a sociedade. A descontinuidade do avanço não o invalida e não restam duvidas que vivemos hoje numa sociedade mais justa e mais igualitária do que a resultante da revolução industrial. Ou, se se preferir, do que aquela que muitos de nós ainda recordam do Portugal pré 25 de Abril.

Pela mesma ordem de ideias, a verificação da falência de um modelo urbano não significa que deixemos de procurar novas formas para novos espaços que correspondam melhor às expectativas e principalmente, à vida, das pessoas. Significa, isso sim, que foi possível ir mais além, e que, entretanto, algumas coisas ficaram resolvidas.

É precisamente o caso dos bairros sociais na cidade do Porto, que vistos à luz dos nossos dias e com os olhos de algumas mentes bem pensantes, adeptas fervorosas dos novos liberalismos e de formas individualistas de viver em sociedade, se revelam monstruosidades sociais, tal a quantidade de problemas que acarretam e tal a forma como atentam à dignidade do cidadão. Pensam ser preferível nunca ter enveredado por tais caminhos urbanísticos que na sua ideia servem apenas para limitar as liberdades e capacidades de cada um se afirmar, esquecendo-se de que aquilo que HOJE observam é a falência de um modelo, própria do seu esgotamento temporal. Esquecendo-se mesmo do estado das coisas anterior ao aparecimento desse modelo/solução, nomeadamente dos problemas que, entretanto, ele ajudou a resolver. Esquecendo até o mais importante, que a cidade “maravilhosa” do tempo dos nossos avós era só para alguns desses avós. Os restantes, todos sabemos como viviam.


Procurar, no despertar do Sec. XXI, reabilitar a cidade oitocentista (que em Portugal não tem directa correspondência temporal, pelas razões por todos identificadas) poderia significar a abertura de uma janela para o futuro. No entanto, os sinais que tem sido possível interpretar não o confirmam. Bem pelo contrário, indiciam a vontade, ora explicita ora camuflada, de caminhar em marcha-atrás para uma tradição modernizada. No fundo, e porque se trata do plano da vontade, e portanto genuinamente politico, a acção, embora revestida de modernidade, é do mais conservador e retrógrado que é possivel conceber.

No caso do Porto, o Presidente da Câmara vai mesmo mais longe e, consistindo a Porto Vivo o seu único, repito, único legado pretende ainda concluir o mandato com as corridas de tão boa, mui nobre e antiga memória. Qual cereja no cimo do bolo a servir de corolário a toda uma ideia bafienta da vida em sociedade e da sua materialização física.

A história, como todos sabemos, tem-se revelado cíclica, pelo que se espera, a breve prazo, uma nova inversão das mentalidades e uma nova AMBIÇÃO.
Portugal e o Porto, como é natural, não serão imunes e correm o risco até de se encontrar numa situação de certa forma pioneira.
Os protagonistas dessa nova ambição, que poderão muito bem ter já saído do novo ciclo político agora iniciado e que se reafirmará brevemente, terão que ter em conta novos parâmetros e sempre mais elevados graus de exigência. Mas não poderão abdicar da procura, sempre renovada, de novos modelos urbanísticos adequados aos novos tempos, que coloquem as nossas cidades, e principalmente o Porto, definitivamente na contemporaneidade.

11 comentários:

Anónimo disse...

ENA!

Anónimo disse...

"No caso do Porto, o Presidente da Câmara vai mesmo mais longe e, consistindo a Porto Vivo o seu único, repito, único legado"

O trabalho feito nos bairros sociais não conta? Ah, já me esquecia, esse é só para "sacar" uns votos (aliás, eu nem sequer conheço ninguém que more num bairro social...).

O que falta na cidade é mesmo o Corte Inglês e mais umas Imolocs com 20 e tal andares (qualquer cidade que se preze tem arranha céus, porque não o Porto?...).

Volta Cardoso que estás perdoado!... (pelo menos aqui por estes tipos com sede)

Anónimo disse...

Daniel:

O comentário acima não invalida que a tua é uma GRANDE e BOA posta, com a qual até concordo na generalidade.

Mas a tua/vossa aversão ao Rio...

Aquele abraço.

Anónimo disse...

Bem esta levanta algumas questões importantes, mas o ciclo da historia não justifica pessoas, mas sim sistemas, ao identifaca-las então poderiamos dizer tambem que Rui rio faria parte desse limite que marca a historia, quanto a mim continuamos a anos luz, dessa reviravolta sugerida, e portanto a SRU ou Rui rio não amrcarão nenhum limite, nem sequer nenhuma mudança porporcional, mais tarde tentarei demonstrar porque.
Agora se me permite a referencia aos carrinhos tirou a credibilidade à tese.

Numa coisa tem razão o povo portuense é sempre do primeiros a reagir, pelo que se adivinha uma mudança profunda , mas atenção motivada pelo povo e seguida de uma novo aproveitamento politico ( de esquerda com sempre) o sistema politico só muda , quando emerge da vontade global do Povo , a politica só é honesta nesta fase, na fase incial da revolta do povo, depois disso , já todos sabem o que acontece - ...

Anónimo disse...

Caro JF
Obrigado. Mas quero dizer-te que não é uma questão de aversão ao Rio. Nada tem a ver com os casos do Barroso e do Lopes, que de facto nunca enganaram, um por oportunista e o outro por bon vivant disparatado. Ou com a Manuela F. Leite, que tambem não engana, porque se pode não gostar dasideias, mas a pessoa merece o nosso respeito. O caso do Rio tem mesmo a ver com engano, porque apesar de diferente de mim, eu acreditei que seria sério e que poderia ter um projecto, que até poderia ser um anti-projecto, ou até qualquer coisa muito minimal. Nunca seria o meu, mas oK! para isso é que estamos em democracia. O que se passa é que ele é simplesmente um gajo do Porto, daqueles que tu tambem telembras, do colégio alemão, com a mania que é sério e a familia e os amigos e tal, e o resto é vazio. E eu sei que tu sabes o que é aquela vereação e o que é que se passa quando tentas ir um pouco mais longe. Mas eu tambem sei que tambem no PS há muita gente assim. Mas não é o caso do Assis, que terá as suas virtudes e os seus defeitos, mas estáa anos luz desta suposta seriedade tacanha e tambem do ultraempreendorismo bacoco.

Anónimo disse...

Carissima Cristina,

Não percebi (lamento) em que é que a questão dos carrinhos invalida o que quer que seja. Até quero dizer que tenho uma boa relação afectiva com as corridas de outrora e acho uma certa graça a estes projectos simplesmente lúdicos. Mas....

Anónimo disse...

essa da ambição é colagem às novas fronteiras. ridiculo. um povo estupido não ambiciona nada.

Anónimo disse...

Caro Daniel,

Como tu sabes tenho dificuldade em dividir os modelos urbanos e arruma-los na direita ou na esquerda. Julgo até que entre o consercadorismo de alguns modelos de cidade ideal encontramos pontos de contacto com as socializantes propostas racionalistas e progressistas que o século XX nos trouxe.
No entanto a questão que colocas aqui é pertinente e ninguém a discute como deve ser:
O que é reabilitar? Afinal o que queremos no Porto, em Lisboa e noutros pontos? Qual a nossa estratégia relativamente ao patromónio construido?
- Será manter as epidermicas fachadas? Será obrigar os proprietários a recuperar as suas casas com as madeiras antigas, escadarias tranversais, lambrins, lanternins, e telhados celados tão ao gosto do Ippar?
Será modernizar os edifícios históricos ao gosto chique dos arquitectos, com uma bandeja estigmatizada de tiques que condicionam a cidade?
Será então que daqui a 100 anos a aparência do centro histórico do porto vai ser a de hoje? Irá ser a de uma cidade com fachadas em pedra, azulejos e cantarias e com fachadas falsas por detrás, caixilhos modernissimos (ou mesmo sem caixilho como o Souto de Moura). Será que restará algum edifício original?
Enfim eu tenho muitas duvidas e não tenho a certeza do caminho.

Anónimo disse...

Uma Rapidinha!

Tens razão, avelino, eu tambem tenho dúvidas. Mas arriscaria que reabilitar, no sentido lato de tornar a habilitar, não corresponde especialmente a nada no espectro politico. Tanto é direita quanto é esquerda. Depende é do sentido que as coisas tomam e da importancia que se lhes dá. Foi para isso que tentei levar o texto.
Já relativamente ao Moderno tenho menos dúvidas. Tipo uma andorinha não faz a primavera. A genialidade do Terragni e os serviços que foi prestando ao fascismo, bem como alguns outros, não invalidam a correspondencia generica do Moderno com as orientações mais socializantes, sejam as sociais democracias ou os comunismos. Mesmo porque os fascismos tambem tem o que se lhe diga no seu lado socializante.
abraço

Anónimo disse...

« o "porto" é cada vez mais o que rodeia a cidade e menos a cidade»

Tudo porque a Cidade tem apenas servido de palco a espetaculos politicos, que servem os interesses pessoais dos mesmos, pretende-se expulsar o povo actual, o bairrista, por incapacidade de reabilitar o que existe e solucionar a cidade na sua forma actual.

A população continua a ser empurrada para a periferia, nada se faz na cidade para servir o portuense, todos os politicos tem optado pelo espetaculo, pela obra nova, pela invulgaridade - pelas audiencias externas. neste caso actual temos as corridas que servem quem nos vista e não nos ajudam em nada, mas ...

Trata-se de pura incapacidade autarquica , que sendo incapaz de corrigir a cidade actual, julga-se no direito de eleger o tipo de comercio e portuense admissivel, no direito de configurar o tipo de portuense ideal - a essa alucinação - chamam masterplan - a Cidade com os portuenses ideais ...

Pobre do autarca que compra obras de arte sem antes medir a sala.

Mas isto vem de há dez anos a esta parte, isso é que me preocupa, porque já ninguem acredita ou tem sequer fé, os portuenses desistiram, já não se interessam - a cidade tá entregue ao poder politico e ao espetaculo das amazing team, que ditam o que é bom e serve os futuros residentes que suspotamente aonde substituir esta cambada de incultos que não percebe nada de espetaculo politico...

Não sei eu tambem o que devamos fazer nas proximas elições, mas nem a esquerda nem a direita me servem, talvez procure um concelho mais humilde, que não se atreva a seleccionar os residentes... parece-me a unica solução.

Anónimo disse...

(Ei tantos erros, perdoem-me mas deviam por aki um corrector ortografico Não? bem, entenderam - era simples - masterplan = selecção e perseguição ao mito «bairrismo portuense», eleição de uma nova sociedade representativa )